Quem tem amigo, tem tudo nesta vida. Neste período complicado, que não consigo postar nem uma única linha, eis que me chega, via e-mail, esta linda colaboração. São trechos destacados do ensaio Em louvor da sombra, de Junichiro Tanizaki, editado este ano pela Cia. das Letras. É só saborear:
"Diz-se que a culinária japonesa é para ser contemplada e não consumida, mas aqui, eu diria mais: ela é digna de meditação. É melodia inaudível, concerto executado pela vela a bruxulear no escuro e pelos vasilhames de laca. Soseki Natsume[1] louvou tempos atrás em seu Kusamakura (Travesseiro de ervas) a coloração do youkan, o tradicional doce de feijão azuki, e, realmente, nada mais digno de contemplação que essa cor. A tonalidade profunda e complexa, a massa semitransparente e nublada de misteriosa profundidade que atrai e retém a luz em forma de tênue, sonhadora luminosidade – são coisas que não se vêem em doces ocidentais. Comparado ao youkan um creme ocidental, por exemplo, é primário e superficial. Pois acomode uma fatia desse doce youkan num vasilhame laqueado e mergulhe-o num ambiente de claridade apenas suficiente para divisar-lhe a cor: agora, a guloseima tornou-se digna de meditação. Ter na boca esse pedaço acetinado e frio que a sombra acresceu de estranha profundidade – e cujo sabor real talvez nem seja notável – é ter o próprio negrume transformado em delicioso bocado derretendo na ponta da língua. Creio que a culinária da maioria dos paises foi concebida para se harmonizar com o serviço de mesa e com a tonalidade das paredes. Pois a culinária japonesa, especialmente, perde metade da apetência quando servida em ambiente e pratos claros. Quando considero por exemplo o avermelhado caldo de missô[2] de todas as manhãs, percebo que essa cor foi desenvolvida nos escuros aposentos de antigas casas. Certa vez, fui convidado a participar de uma cerimônia do chá onde me serviram um caldo de missô, mas ao vê-lo no fundo de uma wan[3] preta à vacilante luz de velas notei esse grosso caldo de cor ocre, que tomo com tanta naturalidade no cotidiano, adquirir um colorido profundo, realmente apetitoso. Considere também o shoyu, em especial o do tipo denso que costumeiramente acompanha sashimi, conservas e verduras da região de Kyoto: como esse líquido espesso e brilhante é rico em sombras, como se harmoniza com as trevas! E mesmo as iguarias de cor clara – o caldo de missô claro, o tofu, a massa de peixe kamaboko, o sashimi feito de pescado de carne branca – perdem vida pela ausência de contraste quando apresentados em ambiente claros. E, acima de tudo, o arroz: seu aspecto é belo e apetitoso quando o vemos à meia-luz servido em terrina revestida de laca escura e lustrosa. Que japonês digno desse nome não se comove quando, removida de golpe a tampa da terrina, vê o cálido vapor subir do arroz recém-preparado, cada grão a luzir como pérola em gota? Nesta altura do raciocínio dou-me conta de que também a nossa culinária tem sua tônica na sombra, e que com ela mantém uma relação indissolúvel."
[1] Soseki Natsume (1867-1916) é um romancista japonês cujas obras foram fundadoras da literatura japonesa moderna. Seu livro Eu sou um gato é publicado em português pela Editora Estação Liberdade. (Nota de autoria de Biagio D'Angelo)
[2] Pasta de soja fermentada, muito utilizada na culinária japonesa. (Nota de autoria de Biagio D'Angelo)
[3] Tigela laqueada. (Nota de autoria de Biagio D'Angelo)
[1] Soseki Natsume (1867-1916) é um romancista japonês cujas obras foram fundadoras da literatura japonesa moderna. Seu livro Eu sou um gato é publicado em português pela Editora Estação Liberdade. (Nota de autoria de Biagio D'Angelo)
[2] Pasta de soja fermentada, muito utilizada na culinária japonesa. (Nota de autoria de Biagio D'Angelo)
[3] Tigela laqueada. (Nota de autoria de Biagio D'Angelo)
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"Dias atrás, o jornalista que me entrevistou pediu-me que comentasse a respeito de pratos diferentes e saborosos. Eu então lhe falei do sushi feito de folhas de caqui – especialidade dos habitantes das remotas regiões montanhosas de Yoshino[1] – e também da maneira de prepará-lo. Aproveito a oportunidade para revelar a receita aos meus leitores: para cada dez de medidas de arroz, uma de saquê deve ser acrescida no momento em que o arroz entrar em ebulição. Depois de pronto, deixe o arroz esfriar completamente e, em seguida, espalhe sal na palma das duas mãos, aperte o arroz entre elas e forme bolinhos compactos. Nesse momento, é imprescindível que a mão esteja totalmente seca. O segredo é fazer os bolinhos só com a ajuda do sal, sem molhar as mãos. Depois, estenda sobre os bolinhos fatias finas de salmão levemente salgadas, envolva cada conjunto com uma folha de caqui com a face superior em contato com o sushi. Na medida do possível, é preciso retirar a umidade tanto da folha do caqui como das fatias do salmão com um pano seco. Em seguida, os bolinhos deverão ser acondicionados numa tina rasa de madeira – do tipo usado no preparo do sushi – ou numa vasilha de arroz, apertados uns contra os outros de maneira a não deixar espaço entre eles, e sobre o conjunto deverá ser posta uma tampa de madeira. Uma pedra de bom peso, do tipo usado para fazer picles, deverá ser assentada sobre a tampa para pressionar o sushi. Preparado à noite, estará pronto para ser degustado na manhã seguinte. No decorrer do dia, o sabor se manterá ideal mas continuará comível durante mais dois ou três dias. Molhe folhas de pimenta-d’água em vinagre e borrife sobre o sushi no momento de servi-lo. A receita me foi passada por um amigo que esteve em Yoshino, mas pode ser preparada em qualquer lugar. (...) Experimentei fazê-lo em casa e concordei com meu amigo: esse sushi é excepcionalmente saboroso. O sal e a gordura do salmão impregnam-se de maneira ideal no arroz e o peixe fica irresistivelmente macio e fresco. Achei esse sushi muito diferente dos de salmão que costumo comer em Tóquio, e tão mais gostoso que vivi dele o verão inteiro. Admirei o jeito diferente de consumir o salmão e a criatividade dos habitantes das regiões remotas e montanhosas carentes de tudo. E ao pesquisar sobre especialidades típicas de diversas regiões interioranas, descobri que seus habitantes têm paladar muito mais apurado que os moradores dos grandes centros urbanos. Num certo sentido, isso significa que eles vêm se banqueteando com iguarias cujo sabor não conseguimos sequer imaginar."
[1] Cidade da Prefeitura de Nara, famosa pelos templos e as cerejeras em flor.
[1] Cidade da Prefeitura de Nara, famosa pelos templos e as cerejeras em flor.
2 comentários:
Li o livro em uma época em que não via a comida com os olhos de hoje, deveria relê-lo. Gosto muito de Tanizaki.
Triste admitir isso, mas não conheço quase nada de comida japonesa. Mas vou ser introduzida às artes culinárias do Japão em breve. Creio eu.
\o/
Pra tempo complicado, além de amigos, como o Henrique diz "o jeito é dançar e bater cabelo".
=)
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